
K9
Entenda o que é essa nova substância que está “transformando” pessoas em zumbis e uma reflexão acerca do tráfico de drogas no Brasil.






Feito por: Thomás Accioly, Guillermo Lacerda, Daniel Magalhães, Gabriel Del Cima, Marcus Vinicius Balbino e Bernardo Fonseca
Robert Oppenheimer teve a infelicidade que poucos homens compartilham: ver a sua grande invenção destruir a vida de milhares de pessoas. Conhecido como pai da bomba atômica, Oppenheimer, com a ajuda de outros cientistas do projeto Manhattan, desenvolveu a arma biológica que viria a destruir Hiroshima e Nagasaki. Com a justificativa de ter algo para usar em defesa à Alemanha Nazista, os Estados Unidos puseram esforço máximo para desenvolver a bomba atômica.
John Huffman faz parte desse seleto grupo com Oppenheimer, mesmo tendo uma justificativa mais compreensível. O químico que buscava entender os efeitos da maconha no cérebro humano teve parte de sua pesquisa roubada. A maneira de sintetizar compostos químicos foi usada para criar a substância K9.
Para entender como a droga surgiu, precisa-se destacar o papel de John W. Huffman, químico e professor da Universidade de Clemson, na Carolina do Sul, que estudava os efeitos da maconha no cérebro humano. Alguns anos antes do início de seus estudos, havia sido descoberto o receptor canabinóide. Além de ser responsável pelas sensações experienciadas no uso de maconha, esse receptor também estava envolvido com coisas importantes como sono, fome e dor, o que abriu um grande horizonte para a criação de novos medicamentos, mas para isso, era necessário entender como funcionava esse receptor. O trabalho de Huffman, no início dos anos 90, era sintetizar compostos químicos para gerar gatilhos ao receptor, que seriam testados em roedores para se ter ideia do tamanho dos efeitos. Ao longo de muitos anos foram desenvolvidos mais de 300 compostos. Em 2008, John foi avisado sobre a presença de um de seus compostos, o JWH-018, em drogas sintéticas. A substância em questão era super potente e descrita como imprópria para consumo humano, mas, as pessoas estavam consumindo e apresentando problemas graves.
De alguma forma, o composto do professor de Clemson foi contrabandeado por um químico que conseguiu acesso a seus estudos e iniciou uma produção em massa do composto na China. De lá, iniciou-se uma distribuição mundial do produto, que foi visto pela primeira vez na Europa em 2004 e em 2008 chegou aos Estados Unidos.

John W. Huffman. (Reprodução\Internet)
No Brasil, a K9 chegou em 2018 e foi trazida pelo PCC com o objetivo de popularizar os entorpecentes nos presídios. Devido a versatilidade das drogas tipo K, elas são facilmente contrabandeadas para as cadeias, já que, em sua forma líquida, podem ser borrifadas em um pedaço de papel qualquer, já servindo como suporte para a distribuição do narcótico.
A K9 é um composto sintético que imita os efeitos da maconha, mas com uma potência muito maior, devido à alta concentração de tetrahidrocanabinol (THC). Ela é feita a partir de plantas pulverizadas com produtos químicos que atuam nos receptores de canabinóides no cérebro.
Seus efeitos podem variar de acordo com a dose, a pureza e a sensibilidade de cada pessoa, mas alguns dos mais comuns são: alterações na percepção do tempo e do espaço, alucinações visuais e auditivas, ansiedade, paranóia, pânico, aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, náuseas, vômitos, diarréia, convulsões, tremores, espasmos musculares, perda de consciência, coma, agitação, agressividade e sonolência. O narcótico age no sistema nervoso central, afetando a comunicação entre as células nervosas e causando uma série de efeitos nocivos no organismo, podendo causar danos irreversíveis ao cérebro e coração, aumentando riscos de overdose e parada cardíaca. Outras decorrências do uso da droga envolvem o desenvolvimento do quadro de esquizofrenia e depressão, fazendo com que os usuários se tornem dependentes e percam o controle de sua vida.
Após o uso da droga, o dependente químico experimenta os efeitos prazerosos da liberação de dopamina. No entanto, o problema é que essa substância tem um alto potencial de causar dependência física e psicológica, o que leva a um aumento da frequência do consumo.
A dependência da K9 tem efeito imediato, mesmo usando apenas uma única vez, pois esse entorpecente não é derivado da planta Cannabis, mas de uma substância sintetizada em laboratório que causa ainda mais a dependência química, assim como outras drogas potentes, como o crack. De acordo com o psiquiatra Fabio Scaramboni, ela é até cem vezes mais potente que a maconha natural.

Droga K9. (Reprodução\Internet)
O efeito da droga inalada ou injetada tem duração entre 30 minutos a 2 horas, podendo levar o usuário à morte. O efeito não se prolonga por todo esse tempo. Normalmente, a êxtase almejada pelo usuário dura entre 10 a 30 minutos, porém é um tempo necessário para viciar. “A sensação era de euforia, mas não conseguia andar ou ter controle do meu corpo, dos braços ou das pernas. Fiquei desgovernado, me jogando de um lado para o outro. A brisa não é gostosa, dura 10 minutos e já vicia. Ou você morre dormindo, ou morre sem conseguir pedir ajuda”, explica ex-usuário sobre os efeitos e consequência da K9 em uma matéria realizada pelo o Uol.
O que chama a atenção de muitos é a proibição dessa substância na Cracolândia. Contudo, previamente, é necessário entender a organização criminosa que comanda essa complexa comunidade. O Primeiro Comando da Capital (PCC) é a maior facção criminosa do Brasil, que também espalha seus infames tentáculos por outros países da América Latina. O PCC se sustenta, principalmente, por meio do tráfico de drogas e conta com mais de 30 mil membros.
Os chefões do mercado nacional das drogas proibiram a circulação da K9 na Cracolândia. Mas por que esse impedimento exclusivo? De acordo com trecho de uma conversa monitorada pelo Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (DENARC), a venda da K9 foi proibida, pois estava causando mal às pessoas que tinham que ser socorridas, chamando mais atenção para aquela atividade. Por mais contraditório que tal discurso seja, além de dar mais notoriedade, os usuários se tornam mais agressivos ao utilizarem a substância sintética, algo que pode ser prejudicial para o seguimento do negócio.
Em uma perspectiva econômica, a partir do momento que esse usuário de K9, presente na Cracolândia, torna-se agressivo, ele acaba tornando-se uma ameaça para outros consumidores de outras drogas. Com isso, o lucro dos vendedores poderá ser afetado. Além disso, esse mesmo usuário de K9 pode ser usuário de outras drogas ao mesmo tempo. A lesividade da droga é muito maior que a do próprio crack, por exemplo. Dessa forma, caso esse usuário venha a óbito, todas as pessoas que vendiam para ele serão afetadas, principalmente, por causa de uma substância.

A Cracolândia é um ponto de concentração de usuários e traficantes de drogas na cidade de São Paulo. (Reprodução\Internet)
Um relato de quem já usou
“A K9, das que eu usei, é a mais pesada. São 5 minutos de brisa e 3 horas de desgraça. Desgraça mesmo.” Caio Silva tem 30 anos e é dependente químico. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro e diz ter consumido drogas desde os 12 anos. “Eu morava na Rocinha, ia para a escola, jogava bola. Era um menino bom. Aí apareceu as drogas.” Caio diz ter largado tudo depois de utilizar substâncias ilícitas:“ Eu já usava antes da morte da minha mãe. Mas depois disso eu me viciei”.
O homem frequentou alguns centros de reabilitação, que o ajudaram a combater o vício. Porém, afirma que o processo não foi fácil. “Eu acho que já passei por uns três já. Nem lembro mais, são todos iguais.” Afirma, ainda, que a droga mais utilizada por ele era a cocaína, em que apresentou um quadro de vício severo por ela.
Conseguiu, por vez, se livrar dessa substância. Entretanto, encontrou-se novamente dependente químico de outra droga: a maconha e seus derivados. “De todas as que eu usei, a maconha era a mais de boa. Só que foi por causa dela que minha vida acabou. Eu comprei e utilizei K9 achando que era maconha. O cara me vendeu como se fosse.” Caio consumiu K9 pela primeira vez e acabou viciando-se de forma rápida. Chegou a vender seus pertences para sustentar seu vício repentino. Afirma não “gostar” tanto da droga, mas seu corpo “fica pedindo ela”.

Campanha de conscientização da associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal. (Reprodução\Apepi)
Hoje em dia, Caio está em situação de rua e se encontra num quadro de dependência química. Aparenta estar confiante para o que ele chama de “segunda batalha”: “Já venci uma, porque não duas?”.
O combate ao tráfico de drogas
Narcotráfico ou tráfico de drogas é o comércio de substâncias consideradas ilícitas de acordo com a Constituição Federal de um país. No Brasil, de acordo com a lei 11.343/2006, que define os crimes relacionados à prática do tráfico ilícito de drogas, em seu artigo 33, prevê que dentre as diversas condutas que caracterizam o crime de tráfico está o ato de entregar a consumo ou fornecer drogas, mesmo que seja de graça.
Uma dúvida que surge constantemente é em relação à limitação concreta de quanto pode-se portar. Não existe uma lei que determine a quantidade de gramas exata que caracterizem consumo pessoal. Nesse contexto, para se considerar tráfico de droga, é necessário que se faça uma análise sobre as circunstâncias em que certa droga foi apreendida. Considera-se, por exemplo, a localidade, o histórico do usuário (se já foi detido por tráfico ou não), a variedade de substâncias e a lesividade dessa droga. Quanto maior for o potencial lesivo, maior é a probabilidade de ser considerado tráfico. 1 quilo de maconha não equivale a 1 quilo de K9, tendo em vista a lesividade maior do K9.

Operação policial realizada em 2016 após ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. (Reprodução\Agência Brasil)
No Brasil, infelizmente, o tráfico de drogas se faz presente na realidade da população. De acordo com a pesquisa “Global Advisor - Crime”, realizada pela Ipsos, empresa de pesquisa de mercado, em 2023, seis em cada dez brasileiros (60%) afirmam que há tráfico de drogas em sua vizinhança. Os números colocam o Brasil em terceiro lugar no ranking mundial entre os países pesquisados, atrás apenas da Tailândia e Chile, ambos com 66%. A média global é de 39%.
Para tentar solucionar esse problema, são feitas diversas políticas de combate ao tráfico de drogas, mobilizando não só forças policiais mas como também toda a população. Para se ter uma noção, em 2017, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro gastaram juntos mais de R$5,2 bilhões para o cumprimento da Lei de Drogas, segundo levantamento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Candido Mendes. Investimento esse que aumenta cada vez mais nos últimos anos.
Entretanto, mesmo com um orçamento bilionário, o combate ao tráfico de drogas não parece demonstrar efetividade condizente ao dinheiro investido, tendo em vista a continuidade da prática criminosa. Para que, então, realmente serviria essa guerra às drogas?
“O argumento de “combate ao tráfico” serve para o estado controlar a população pobre. Invasões de domicílio, execuções sumárias ou prisões arbitrárias ganham legitimidade perante a opinião pública. Até porque ninguém quer ser afetado pelo tráfico de drogas, não é mesmo?”, afirma Marcelo Navarro, advogado e analista político, especialista em Ciência Política. “A mídia gera uma histeria com a propagação do clima de medo em conjunto com a imagem de que todo morador de comunidade é traficante. Qualquer ato estatal nessas comunidades, por mais violento que seja, acaba ganhando um certo respaldo.”
Marcelo ainda diz que essa mídia contribui para a associação de violência e tráfico de drogas com pobreza e subúrbio: “A pobreza passa a ser criminalizada e controlada”. É nesse sentido que, segundo o advogado, o morador do subúrbio se espreme entre opressão policial e violência dos traficantes locais.

Manifestação que anseia pela revisão de políticas que visam combater as drogas. (Reprodução\Mídia Ninja)
“As forças estatais já notaram que seria praticamente impossível acabar com o tráfico de drogas. Esse caminhão de dinheiro investido todo ano serve no sentido de manter essa atividade ilícita somente nas comunidades e bairros pobres, o mais longe possível da área nobre.” Entretanto, o tráfico de drogas é bastante próximo dessa classe nobre. A pesquisa da FGV “Estado da Juventude, Drogas, Prisões e Acidentes” constatou que 62% dos usuários de drogas pertencem à classe A - cuja renda familiar mensal supera 25 salários mínimos. Além disso, 85% desses consumidores são brancos.
Marcelo conclui que o Poder Público apresenta “soluções mágicas” que não atingem estruturalmente o sistema do tráfico, mas que orgulham a opinião pública. “O mal que se finge combater passa ao largo do número de mortes da Guerra do Tráfico: jovem negro e pobre.”
Assim como a cocaína, heroína ou maconha, o K9 é mais uma droga ilícita presente no “cardápio” brasileiro. Porém, seu efeito acaba sendo até mais forte que essas outras citadas. De certa forma, é mais uma substância que irá ser combatida, mas não erradicada.